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13 abril 2006

A vida é uma comédia

De forma que o homem vive sozinho. O que o obriga a ser justo e grande? A educação? o exemplo? A educação ensina-lhe a guerra; pedaços de ciência fazem-no balofo e seco; e o exemplo mostra-lhe o triunfo dos habilidosos, dos que se curvam e transigem, sabendo ameaçar ou recuar conforme a ocasião; dos que alijando os preconceitos — coração, ilusões, sonho — ficam mais lestos para um combate sem tréguas. A pobreza parece-lhe a desonra, porque vê sempre o pobre desprezado e calcado; o amor uma irrisão e procura um casamento rico; o sacrifício uma tolice. Só teme a valer a cadeia e a pobreza.
Depois a luta pela vida é aspérrima. Este moço aspira a tudo e tem na sua frente uma multidão compacta, que lhe barra os lugares. O triunfo de quem é? Dos que calcam para passar, sem que haja gritos ou blasfémias que os detenham. Os menos audaciosos ou os mais honestos afundam-se. Não há energia que resista à luta miudinha de todos os dias — se se tem coração. Embota-se a vontade, gasta-se a ambição, e em torno os que adularam ou calcaram sobem, trepam, com risos desdenhosos e ares de protectores.
É por isso que quase todos os rapazes, que até aos vinte anos reclamam justiça e se revoltam, começam, depois, curvos e submissos, a entrar no grande rebanho. Soa a hora trágica da vida, Pesam-se as coisas. Começa-se a ver que o que vale na terra não é o talento nem o trabalho. Para se vencer assim era preciso ser-se um herói ou um santo; gastar-se a existência para se conseguir o que um imbecil alcança numa hora, cortejando e dobrando-se. Principia-se então a ser o quê? Charlatão.
A vida é uma comédia. Toma-la a sério para quê — se ela é feita de nulidades, de coisas vãs ou ridículas?

in O Padre - 1901, Raul Brandão

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